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POEMAS E POESIAS

ANTÚRIOS

quando o telefone silenciou
olhei em volta, 
olhei para dentro
e vi o tamanho do caos

contabilizei


uma Hiroshima, duas nagazakis
um  Columbine e três tsunamis
que chegaram varrendo tudo

duas fukushimas e um Chernobyl 


desabrocharam no vaso de anturios

nasceram Trifoliums Repens
entre os azulejos
e uvas com gosto amargo de lima


se espalharam pelos quartos

desde então ficou este
coração radiotivo e burocrático
com cercas eletrificadas muito altas


e um hálito de tango brotando do chão

ontem nasceram rosas de arame farpado
e lírios de césio e mercúrio
acácias que não me disseram nada


(e um poster de Marlene Dietrich)

quando o telefone silenciou
olhei em volta
olhei para dentro 
e somente o seu perfume 
persistiu

EXISTIRÁ POESIA?

existirá poesia

em um discurso do papa

na fumaça de um Marlboro

Em um grito de socorro

ou num corpo largado na esquina?

 

existirá poesia

num verso do apocalipse

na escuridão de um eclipse

no voo do homem morcego

no olhar crispado de medo

ou no quadro da santa ceia?

 

existirá  poesia

na bula da xilocaína,

no rastro da cocaína

no gosto da fanta uva

no cheiro da camomila?

 

no sangue do conde drácula

num gole de coca-cola

no menino que cheira cola

no aviso postado na placa

e no som de uma buzina?

 

existirá poesia

na lâmina desta navalha?

 

no baton do colarinho

e no azul turquesa deste mar?

 

existirá poesia

ou será tudo prosa e maresia?

EXTRAVIOS

Algumas coisas nasceram
Para não ter fim
Laranjas pela metade
Histórias que não foram contadas
O não que não abraçou o sim

A flor que brotou
E não floresceu
O amor que amou
Mas adoeceu
O caminho sem chegada 
A carta extraviada
O tal não dentro do sim

Tem a sina de uma bala perdida
cambaleia em direção ao alvo
Como a faca rasgando a água
Como o fogo mastigando a carta
Como o vento que penteia as palmas
Como a pedra que nasceu do pó
Como o tempo que engole os dias
Como o corpo despido de alma
que foi beijar a terra
longe, bem longe de mim.

MEDIDA EXATA

De nós dois ficou esta estória 

Mal contada e sem final feliz

O buraco bem no meio do peito

E pouca linha para cerzir a cicatriz

 

Ficou um grafite no muro

Este buquê de folhas secas

Um baú de pedras murchas

E um bolero nariz com nariz

 

O que fazer da minha tristeza,

Como beber de um gole só

A medida exata de tanta solidão?

OFÍCIOS

Ele

passa dias a fio

cozinhando o frio

espalhando nuvens

derramando chuvas

acendendo as luas

 

Deus

consome

domingos inteiros

pintando lírios

e afinando o zumbido

dos marimbondos.

PEQUENA SONATA

DE IMPURO MALDIZER

onde havia uma

frase no muro

ficou esse azedo de uva

todo o leite derramado

e um buraco de bala

 

no lugar do peito florindo

restou uma trincheira

e o endereço errado

no carimbo dos correios

 

ao invés

de um poema,

um desagravo.

 

no lugar do coração

eles fincaram

uma bandeira pirata.

POEMA DA AVE CIGANA

O que teria sido de mim não fosse a sina

de ser arrastada como um galho seco

na correnteza dos rios

 

O que teria sido de mim

tivesse eu encontrado raiz em algum lugar

e não soubesse na frieza do lar 

do amontoado de tijolos, ferragem e telhas

e outros sentimentos de alvenaria

 

no mapa da minha pele 

estão tatuados montanhas e vales

cidades tumultuadas e domingos sem sol

 

lugares que são cicatrizes quase imperceptíveis

porque certas dores não sujam a camisa branca

do uniforme do Colégio Presbiteriano

 

Esta peregrinação cigana

deixou na minha memória

pouco mais que rastros

em cidades sem futuro

ruas margeadas de árvores 

que só dão sombra

frutas não comestíveis 

e insetos
que urinaram sobre os meus sonhos.

SETE SAIAS

Nazarena
O seu receio contido
Dentro das sete saias
Não cabe
Na tristeza infinita
Do olhar que vislumbra
A mágoa
Toda vez que o seu homem
Atende o chamado do mar
E vai...


São sete desejos, sete sinas
Sete  redes, sete medos
Sete fomes, sete peixes
Sete lençóis de cambraia

Sete cores do arco-iris
Sete olhares no Atlântico
Sete luas, sete lutas

Sete naufrágios
Sete náufragos

São sete cruzes na praia
E sete são as cicatrizes
Que nunca irão fechar

São sete mortes,
Sete homens
Sete punhais de Netuno
São sete mulheres
de negro.

E negras
São as sete saias.

Livro 1
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