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A humanidade cabe numa caixa de papelão

Deve ter passado muito frio, o recém-nascido.

Deve ter sentido falta da água morna do aquário da barriga de sua mãe.

Consigo imaginá-lo naquela posição em que ficam os bebês antes de nascer, dormindo de conchinha, inocente, sem imaginar que lá fora existem países em guerra e homens vendendo a alma ao diabo.

Dormiu, sonhando com anjos tocando harpa e lírios derramando ouro.

Dormiu como se escutasse um minueto e seus olhinhos fechados enxergassem Jesus.

Naquela rua, naquele momento, passaram táxis vazios e ônibus à procura de uma plataforma na estação rodoviária.

Passaram transeuntes apressados buscando trabalho ou descanso.

Circularam junkies sob o efeito de álcool e drogas, transeuntes amedrontados, olhando aflitos para a frente como se fugissem da escuridão da noite e seus ardis.

Por ali passou o medo em passos de ganso.

Passou a desesperança com a sirene ligada.

Passou uma nação em transe, febril, ensandecida sob o efeito da ganância e da falência de caráter daqueles que a conduzem.

Transitou um Brasil dormente por ali.

Um Brasil doente, canibal de si mesmo, soprando um samba de Adoniram numa flauta feita a partir de um fêmur.

Passaram ambulâncias carregando doentes e automóveis importados levando novos ricos e playboys desajustados.

Passou uma mulher pedindo esmola, levando ao colo uma menina que não teve a sina de ir parar em outra caixa de papelão.

Passaram por ali a fome, a miséria e a injusta distribuição.

Passou a violência aniquiladora, escancarada no olhar das pessoas.

Passaram 518 anos de uma história cheia de nódoas e metas não atingidas.

Passou um país que não se cumpriu.

O bebê dessa crônica não conhecerá as letras do alfabeto ou um poema de Cora Coralina.

Não aprenderá a falar ou caminhar.

Não sentirá a falta de um abraço de mãe ou escutará um conselho de avó.

Não verá os flamboyants sangrando no coração das primaveras, nem distinguirá o roxo dos ipês do vermelho das rosas no canteiro das praças.

Não nadará em um riacho, nem sentirá o orvalho da grama molhada sob os pés.

Não testemunhará a mudança das luas ou das estações, nem jogará futebol com outras crianças.

Mas também não se entristecerá com a classe política brasileira, que assassina fria e impunemente o futuro de gerações inteiras.

Ele não ouvirá falar de negociatas escusas e nem terá o coração quebrado por algum amor de juventude.

Foi abandonado em um ponto de ônibus, como alguns encaminham indesejadas ninhadas de gatos na esperança de que alguém passe e se encha de compaixão, e dê para essa tragédia urbana um final feliz.

Ah, menino de Brasília, a visão de seu corpinho tremendo de frio dentro de uma caixa de papelão deveria aguçar o sentimento de culpa e fracasso de toda a humanidade, mas estamos preocupados demais com o vencimento de nossas promissórias e com a escolha do próximo colégio de nossos filhos.

Falhamos!

Você sucumbiu desamparado, desnutrido e sozinho, conhecendo em suas primeiras e derradeiras horas o quanto é bruto o mundo em que habitam os humanos.

E é bem provável que apareça alguém dizendo que ‘foi melhor assim’.

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