(Para o Wellington Barbosa Gonçalves, o Gagau)
Aquele menino tinha tesouros que valem mais que ouro.
Mais que prata e do que queijo e requeijão.
Ele tinha um embornal com bolinhas de gude, um pião de madeira e um álbum de figurinhas do Grande Circo Mexicano.
Tinha cadernos da escola, um livro de tabuada e uma caixa de lápis de cor.
Ele tinha um cãozinho que lhe lambia as mãos.
E uma andorinha fazendo ninho na cumeeira da varanda, um canarinho cantando ao longe e um girassol que sorria.
Era posseiro da igreja com direito a subir na torre, badalar de sino e bagunçar o coreto.
Era dono do pátio embandeirado com fogueira de São João.
Tinha dez padre-nossos, quinze ave-marias e um catecismo; um terço de conta-de-lágrimas e um sermão do padre João.
Levava um santinho no bolso da camisa e um anjo da guarda, no coração.
Tinha uma solidão domingueira e uma febre de gripe.
Tinha um rosário de lombrigas e um medo de morrer.
Tinha caxumba, catapora, e uma tatuagem no braço como prova da vacinação.
Tinha um redemoinho que levantava a poeira da rua e onde vivia o cramulhão.
Tinha também um oratório, a morada de Deus.
E tinha Deus.
Aquele menino tinha um terreiro, que era um latifúndio do tamanho do Amazonas.
E um varal de pendurar roupas que, à noite, se transformavam em fantasmas que lhe afugentavam o sono, trazendo as ‘pisadeiras’.
O menino tinha um vento com voz de Caruso que varria os telhados.
E uma chuva nervosa fazendo algazarra no milharal.
Ele tinha uma janela para o rio.
Tinha um rio.
Um relâmpago e um trovão.
Tinha um amigo imaginário e outro, filho da vizinha.
Tinha calções sujos de terra e um exército de formigas.
Um rebanho de boizinhos de melão de São Caetano e um canavial de grama.
Tinha vulcões de formigueiro, pequenos Vesúvios que jamais entraram em erupção.
E ossos de galinha enterrados na terra, material de arqueologia vã.
Aquele menino tinha dinossauros fantasiados de lagartixas e calangos que sabiam dizer sim.
E outras criaturas pré-históricas, como o louva-a-deus que molhava a bunda na água, besouros encouraçados e verdes esperanças.
Aquele menino tinha uma orquestra de cigarras à hora da Ave-Maria.
E tinha Maria, uma irmã.
No quintal daquela casa ele escreveu seus primeiros evangelhos, pensou nano-pecados e cometeu insignificantes heresias.
Foi no número 149 da Rua Topázio que ele enterrou os sonhos de algibeira e as certezas com que nasceu.
O quintal é o cemitério da infância.
E é lá que a inocência do interiorano jaz.