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Topázio 149

(Para o Wellington Barbosa Gonçalves, o Gagau)


Aquele menino tinha tesouros que valem mais que ouro.

Mais que prata e do que queijo e requeijão.

Ele tinha um embornal com bolinhas de gude, um pião de madeira e um álbum de figurinhas do Grande Circo Mexicano.

Tinha cadernos da escola, um livro de tabuada e uma caixa de lápis de cor.

Ele tinha um cãozinho que lhe lambia as mãos.

E uma andorinha fazendo ninho na cumeeira da varanda, um canarinho cantando ao longe e um girassol que sorria.

Era posseiro da igreja com direito a subir na torre, badalar de sino e bagunçar o coreto.

Era dono do pátio embandeirado com fogueira de São João.

Tinha dez padre-nossos, quinze ave-marias e um catecismo; um terço de conta-de-lágrimas e um sermão do padre João.

Levava um santinho no bolso da camisa e um anjo da guarda, no coração.

Tinha uma solidão domingueira e uma febre de gripe.

Tinha um rosário de lombrigas e um medo de morrer.

Tinha caxumba, catapora, e uma tatuagem no braço como prova da vacinação.

Tinha um redemoinho que levantava a poeira da rua e onde vivia o cramulhão.

Tinha também um oratório, a morada de Deus.

E tinha Deus.

Aquele menino tinha um terreiro, que era um latifúndio do tamanho do Amazonas.

E um varal de pendurar roupas que, à noite, se transformavam em fantasmas que lhe afugentavam o sono, trazendo as ‘pisadeiras’.

O menino tinha um vento com voz de Caruso que varria os telhados.

E uma chuva nervosa fazendo algazarra no milharal.

Ele tinha uma janela para o rio.

Tinha um rio.

Um relâmpago e um trovão.

Tinha um amigo imaginário e outro, filho da vizinha.

Tinha calções sujos de terra e um exército de formigas.

Um rebanho de boizinhos de melão de São Caetano e um canavial de grama.

Tinha vulcões de formigueiro, pequenos Vesúvios que jamais entraram em erupção.

E ossos de galinha enterrados na terra, material de arqueologia vã.

Aquele menino tinha dinossauros fantasiados de lagartixas e calangos que sabiam dizer sim.

E outras criaturas pré-históricas, como o louva-a-deus que molhava a bunda na água, besouros encouraçados e verdes esperanças.

Aquele menino tinha uma orquestra de cigarras à hora da Ave-Maria.

E tinha Maria, uma irmã.

No quintal daquela casa ele escreveu seus primeiros evangelhos, pensou nano-pecados e cometeu insignificantes heresias.

Foi no número 149 da Rua Topázio que ele enterrou os sonhos de algibeira e as certezas com que nasceu.

O quintal é o cemitério da infância.

E é lá que a inocência do interiorano jaz.

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